A romantização da garra brasileira
“Brasileiro é guerreiro.”
“Brasileiro não desiste nunca."
“Brasileiro faz das tripas coração.”
“Teeeeente outra veeezzz.” (Valeu, Raul.)
A gente cresce ouvindo que o nosso povo é forte, resiliente, corajoso, gente que mata um leão por dia e corre atrás. Uma necessidade de sobrevivência que acabou virando uma espécie de medalha de honra, como se fosse bonito viver se fudendo e sorrindo mesmo assim.
Mas será que somos tudo isso mesmo? Ou somos só pessoas tentando fazer de tudo pra sobreviver porque não têm opção? Ou é isso, ou é passar fome e morar na rua. Não tem plano B.
A mulher que acorda às 4h da manhã pra pegar dois ônibus, trabalha 12 horas, volta pra casa, cuida dos filhos, faz o jantar e ainda arruma tempo pra estudar… ela não é guerreira porque quer. Ela é guerreira porque, se não for, não come.
O cara que tá “empreendendo” vendendo bombom na rua depois de ser demitido não é empresário nem senhor do próprio destino. É só um cara tentando não passar fome e manter as contas em dia.
Mas a gente romantiza essas situações. Olhamos para essas pessoas com trabalhos totalmente precarizados e chamamos de heróis, guerreiros, lutadores. Personagens de novela das nove que sofrem pra caramba, mas que, no fim, têm a promessa de uma virada de vida ao som de Roupa Nova.
Eu sou filho de uma empregada doméstica e de um vendedor autônomo. Meus pais lutaram a vida inteira pra gente ter o mínimo: educação e comida na mesa. Vi meu pai tentar de tudo, empreender, conseguir um emprego melhor, sem sucesso. Morreu aos 68 anos, num hospital público, onde a gente tinha que comprar, pasmem, até os sedativos que aplicavam nele porque não tinha no estoque do hospital, sem conquistar a casa própria, sem deixar pensão pra minha mãe, que segue trabalhando como doméstica. Eles tentaram. Eu vi o esforço deles.
Deram o melhor que podiam com o conhecimento e as ferramentas que tinham. E, com todo respeito ao Harper Lee, baseado na experiência da minha família eu digo: o “sol” talvez não seja para todos.
Enquanto a gente aplaude a garra do povo, ninguém se pergunta: por que é que a gente precisa lutar tanto pra conseguir tão pouco? Essa exaltação da força vira anestesia. Vira desculpa pra manter tudo do jeito que tá. Porque é mais fácil elogiar o “jeitinho brasileiro” do que resolver o problema que obrigou ele a existir.
Essa nossa “força” talvez seja exatamente o que nos mantém na merda. Porque quem deveria resolver os problemas de acesso a oportunidades e qualidade de vida vê a gente se virando, dando um jeitinho, e pensa: “Eles estão dando conta. Eles sempre dão. Nosso povo é forte, nosso povo aguenta. Deixa assim.” E a gente segue aqui, achando bonito o que, na real, é triste pra cacete.
Milton Nascimento e Fernando Brant já diziam: “Uma gente que ri quando deve chorar, e não vive, apenas aguenta.”
É exaustivo pra caramba.
Seria ótimo se, no Brasil, a gente não precisasse ser herói todos os dias. Ser forte todos os dias. Aguentar esses absurdos todos os dias.
E sabe o que me faz sentir ainda mais otário? Apesar de toda essa merda, eu ainda amo o Brasil. Tenho um orgulho danado de ser brasileiro.
Alguém, por favor, atire em mim.
Vamos parar de transformar sofrimento em virtude. Isso só é bonito em novela. Na vida real, é rir da própria tragédia. Coisa que, indevidamente, somos bons demais aqui na Terra Brasilis.